Texto
de Paulo Urban, médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
Em
etnias humanas as mais variadas, espalhadas pelos cinco continentes, desde as
mais arcaicas até as civilizações contemporâneas, que valorizam o ritualismo
mágico e a participação mística do ser humano integrado à natureza, faz-se
imprescindível a figura do xamã. Este, universalmente, é reconhecido em seu
meio como elo entre nosso mundo terreno e as hostes espirituais, entre o
sagrado e o profano, entre os vivos e seus ancestrais.
A
despeito do termo ter-se popularizado (sendo aplicado a todo e qualquer curandeiro
especialmente detentor do saber médico-religioso de seu povo), o nome xamã,
originariamente, é asiático. Diz respeito aos samans, feiticeiros Tungues, um
dos povos da família altaica que habitava a região centro-setentrional
siberiana na era Paleolítica, cerca de 20.000a.C. O termo é aparentado do
sânscrito sramana e do pâlisamana, que designam o “homem inspirado por
espíritos”, podendo igualmente significar “esconjurador ou exorcista”.
O
xamã é, antes de tudo, o porta-voz oracular de seu povo. É ele o iniciado nos
mistérios da natureza, nos segredos dos ciclos de vida e morte, nos fenômenos
mórbidos ou climáticos que podem ameaçar sua comunidade. Professando um papel
de agente equalizador de forças, mediante sua cumplicidade com a natureza, o xamã
detém a sabedoria de interpretar os seus desígnios e escutar os seus apelos a
fim de contrapor às vicissitudes e às intempéries da vida seus ritos e passes
capazes de reinstaurar a ordem cósmica, garantindo assim a permanência de sua
gente ao longo das gerações.
O
xamã opera sempre atento aos sinais que possam ser lidos à sua volta; ele ouve
as pulsações da terra, compreende o caráter dos ventos e tempestades, entende o
que lhe dizem os animais, extrai conhecimento de plantas sagradas, vale-se das
propriedades medicinais dos reinos mineral, vegetal e animal que o cerca, e
prevê em razão de eventos observados a tendência das ocorrências vindouras.
O
universo xamânico, podemos afirmar, é sincronístico; isto é, longe da relação
de causa e efeito a que o mundo civilizado ocidental, filho da ciência moderna,
acostumou-se a viver nos últimos três séculos de história, o modo de viver
xamânico privilegia as sincronicidades. Tal termo, no sentido que lhe deu Jung
(1875-1961), diz respeito ao fenômeno de coincidirem no tempo dois ou mais
eventos objetivos, claramente perceptíveis na realidade exterior, sem relação
causal entre os mesmos, mas que, simultaneamente, são consonantes com algum
estado psíquico fortemente emocional, o que permite àquele que presencia tal experiência,
abstrair dela algum significado súbito e evidente, capaz até mesmo de subverter
suas próximas condutas, ainda que tal entendimento se faça por vias não
racionais.
Assim
sendo, o xamã é aquele que atualiza em seu contexto cultural uma tendência
inata da espécie humana, que consiste em criar símbolos e transformar
inconscientemente o significado de objetos, seres vivos ou eventos naturais, de
modo a conferir-lhes uma importância psicológica mais profunda (ou mesmo
sagrada), para daí fazer uma leitura sincronística dos fenômenos todos que os
agreguem.
Tal
prática, a paleoantropologia o prova, remonta aos tempos pré-históricos.
Inúmeras cavernas do paleolítico apresentam figuras rupestres de animais em
câmaras interiores às quais o caminho é bastante dificultado, devendo o
visitante arrastar-se por passagens baixas e estreitas, escuras e úmidas, até
ficar impressionado diante das pinturas. Evidentemente, locais quase
inacessíveis assim, serviam ao propósito de cerimônias ritualísticas
reservadas.
As
mais interessantes figuras estão na caverna-templo de Trois Frères, sul da
França. Nela pode-se ver um homem barbado, com corpo de cavalo, patas de urso e
chifres de veado, dançando. Nela também encontramos a figura de outro homem
vestindo pele de animais e tocando flauta. Na caverna vizinha, Tuc d’Audoubert,
foram descobertas pegadas de um dançarino em torno de um baixo-relevo que
mostra dois bisões, e as marcas são de passos dados sobre os calcanhares, de
modo a imitar os cascos dos animais. Tudo isso nos revela o quanto a interação
dinâmica entre homens e animais sempre marcou profundamente o psiquismo mágico,
próprio dos povos que se faziam representar por seus xamanes.
A
propósito, o animal, tomado em sua qualidade de arquétipo, representa nosso conjunto
de potencialidades e instintos que podem desdobrar-se em dons especiais se
devidamente assimilados. Os animais simbolizam, via de regra, forças cósmicas
terrenas, trevosas, ou espirituais, e acham-se presentes por todas as
mitologias, quer associados à imagem dos deuses, quer ocupando o lugar das
próprias divindades.
O
poder do xamã, nesse aspecto, decorre do entendimento que se estabelece entre
ele e as hostes espirituais que o rodeiam, visto que não se discute que o xamã
possa perceber a realidade sutil disfarçada por detrás dos eventos corriqueiros
da vida, como por exemplo, o vôo rasante de um pássaro, a passagem de um
morcego em hora de sagração ritualística, o rugir de uma fera, a queda de uma
árvore etc… A percepção intuitiva xamânica não se limita, obviamente, à esfera
animal; toda a natureza pode servir-lhe de texto sagrado, e o xamã interage com
o espírito da lagoa, com a força da montanha, com as entidades do fogo e assim
por diante. Cite-se aqui o iaque Don Juan, famoso brujo dos livros de Carlos
Castañeda: “O xamã é aquele que realiza, graças aos espíritos-guardiões, aquilo
que nenhum homem comum conceberia ser possível”.
Em
1996, conheci na Bolívia, num Congresso de Psiquiatria, o xamã Carlos Prado,
que esteve em setembro passado visitando o Brasil a convite da revista Planeta.
Carlos proferira uma palestra para o meio acadêmico que versava sobre os
efeitos terapêuticos da ayuasca no tratamento das drogadependências. A ayuasca
é uma das plantas de poder com que Carlos Prado trabalha. Fiquei impressionado
com sua clareza e conhecimento, e iniciei ali mesmo uma relação profissional
que se estendeu à amizade e, sobretudo, levou-me a uma busca iniciática, que
até hoje vem se desdobrando. Em 1998, fui levado por ele ao Tiraque, cidade
próxima de Cochabamba. À noite, afastamo-nos do modesto povoado em direção à
região campesina. Instalamo-nos em casa de adobe, longe de tudo aquilo que se
possa chamar civilização. Bem longínquo, ouvíamos o som de uma zampoña. Pela
primeira vez pude então compreender o que vem a ser uma manifestação do
espírito-guardião, que muitas vezes apresenta-se sob as vestes de um animal de
poder.
Na
última passagem de Carlos Prado pelo Brasil, ele me recomendou a seu
conterrâneo, o xamã Inti Roman, com quem tenho dado seguimento a meu processo
de descobertas pessoais e aprendizado de sua cultura. Dele aprendi, por
exemplo, alguma coisa a respeito dos três principais animais totêmicos por
excelência do universo andino: o puma, o côndor, e a lhama.
A
lhama é o tronco genético da família dos camelídeos, sendo a alpaca, o guanaco
e a vicunha os demais componentes de seu grupo. Importantíssimo para a economia
andina, deste animal tudo é aproveitado, desde o esterco e a gordura, até a lã.
Os camelídeos habitam as altas montanhas e representam a própria Pachamama, ou
mãe Terra, posto que são animais serenos, resistentes ao frio, fortes e
estáveis. Da vicunha pode-se extrair a lã mais fina, com a qual, antigamente,
apenas os nobres Incas podiam vestir-se. Seu surgimento em sonhos e visões traz
a idéia de trabalhos e fardos a serem cumpridos, sugere-nos resistir às
dificuldades e nos anuncia bom agouro aos novos empreendimentos.
Já
o condor, em todas as mitologias da Cordilheira dos Andes, seja em Tiahuanaco,
em Chavin de Huantar, nas cerâmicas de Nazca ou pedras de Ica, é uma ave
cósmica, portadora de energia solar e simboliza o espírito das montanhas.
Relaciona-se ao Uirapuru das florestas amazônicas e é correlato da águia na
alquimia. O condor, maior ave de rapina do planeta, simboliza a consciência
arguta e desabrochada, de asas abertas, capaz de enxergar com clareza o
presente e o futuro. É também ícone de liberdade, de renascimento e sinal de
intuição sincronizada à inteligência.
O
puma, animal caçador de hábitos noturnos, por sua vez, é contraparte do condor.
Simboliza a essência feminina e comumente é visto representado com um
meio-disco preso ao pescoço, sugestivo do elemento lunar. Podemos dizer, condor
e puma compõem o “tao” andino, já que respectivamente são exemplos das energias
opostas primordiais, de onde tudo se deriva: K’onhi (yang, ou o quente) e
Tchiri (yin, ou o frio).
Claro,
muitos outros animais existem dentro ou fora do mundo andino, e todos eles se
prestam para nos impressionar o psiquismo ou assumir a função de
espíritos-guardiões. Mais adiante daremos um quadro sumaríssimo de alguns
desses animais que freqüentemente nos visitam em nossos sonhos. Cada animal
traz os talentos que lhe são inerentes. Sempre que os vislumbramos, quer em
sonhos, quer em visões ou exercícios de imaginação ativa, conforme nos ensinou
Jung, não deveríamos desperdiçar a chance de explorar em nosso mundo interior
os aspectos para os quais eles chamam nossa atenção. Muitas vezes o surgimento
de certos animais propõe que focalizemos a consciência sobre determinado modo
de agir, em razão do que, a partir dessa nova percepção, somos inspirados e
melhoramos nossa conduta.
A
maneira mais eficiente de identificarmos nosso animal de poder (aquele que
prevalece em nossa mitologia pessoal e nos acompanha pela vida, e que reaparece
sempre que estamos precisando rever ou descobrir certos passos do caminho), sem
dúvida alguma, é mediante a ingestão de bebidas sagradas, ampliadoras da
consciência, potencializadoras do psiquismo. Na falta dessa oportunidade, Inti
Roman nos ensina um exercício doméstico proveitoso, para ser feito com
seriedade após um dia tranqüilo, durante o qual podemos nos preparar mediante
jejum (aconselhável, mas não necessário) e bons pensamentos:
1.
Prepare previamente um ambiente reservado (pode ser o quarto de dormir) com
incenso, iluminação de velas e música suave.
2.
Ao iniciar sua harmonização, tome um copo d’água e respire fundo por algumas
vezes até perceber-se bem calmo e relaxado.
3.
Relaxe o corpo, focalizando sua atenção parte a parte, de baixo para cima; isto
é, relaxe primeiro os pés e aos poucos vá relaxando todo o corpo até chegar à
cabeça.
4.
Coloque música motivacional. Dê preferência à música xamanica ou indígena, com
instrumentos de sopro e tambores se possível. Qualquer música harmônica e
inspiradora, na verdade, serve.
5.
Feche os olhos e deixe-se levar pelo som e perfume do ambiente. Imagine-se em
algum lugar em meio à natureza; poderá ir às montanhas, à praia, à floresta,
enfim, a qualquer lugar…
6.
Mantenha-se receptivo e esteja atento às imagens que surjam nessa experiência e
nos sonhos das próximas noites, até que determinado animal prevaleça e se torne
presente de modo significativo para você.
7.
Explore, com todo o respeito, todas as possibilidades de diálogo e aprendizado
que poderá ter consigo mesmo a partir da percepção de seu animal de poder.
8.
Agradeça à natureza e aos animais por terem você como amigo.
9.
Agradeça às possíveis graças recebidas ou idéias intuídas.
Obs:
Não se preocupe nem fique ansioso para encontrar seu animal de poder. Se proceder
corretamente, em momento oportuno ELE encontrará você!